sábado, 15 de agosto de 2009

DE CLEMENTE




Valentia é virtude
Em terra de fera
Nobreza amiúde
Covarde é quitude
Jantado na guerra

Fazendo cachaça
Em alambique, o primeiro
Clemente de Canabrava
Compôs nova roça
Caatingas adentro
Onde lhe era afeito
Fez curral de pedra
Fez brejo de pedra
Apois, canabrabeiro
Era sujeito
Que da pedra era feito

Compôs seu milharal
Em Lagoinha
Teceu gado em
Bandas do Caldeirão
Mas, no seu caminho
Sangue riscava o chão
Um sertanejo que por ele
Teve morte daquela
Morte mais matada
A morte de faca

O cabra tinha aldeia
E com sua faca
Clemente compôs
Da sua morte a teia

O pedra-sujeito
Campeava seu gado
Mandioca, milho
Estava atado seu pleito
E a vingança mais certa
Dessas de filho
Dormia bem quieta
E a viúva chorosa
Já lhe plantava
Precoce mortalha
A chuva lhe abria cova

Apois em sertão
Só a morte é farta
E defundo é a roça
Que mais vinga
Crescendo, de cruz, as mata

E em três dias
De solidão dos seus
Passavam sem haver
De Clemente notícias
Está em suas roças?
Em suas caatingas?
Em braços de putas
De distantes praças?
Não, dizia a estrada
Clemente Machado
Completou-se o ser
Virando lajedo
E nasceu-lhe, do peito
Que de pedra era feito
Um galho de faca

SERRA DE SANTO INÁCIO

A terra bruta
Inculca na cuca
O esmorecimento
Terra ingrata
Não se apalpa
O merecimento

Esse vai no vento!

Santo Inácio
Homens lassos
Entre rochas
Plantam dor
Colhem ouro
Mas não roça

Cá, a terra é grossa!

Ouro é alarido
É faca, bramido
De rico que é morto

Morto, uma hora
Ora, rico
Se mata por
Assunto pouco

domingo, 12 de julho de 2009

“Vi carros triunfais... troféus...
Pérolas grandes como a lua...
Eu vi os céus! Eu vi os céus!”
Manuel Bandeira

“Chega-te a mim! Entra no meu amor,
E à minha carne entrega a tua carne em flor!”

Olavo Bilac


“Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
Até desabrochar em puro grito
De orgasmo, num instante de infinito”
Carlos Drummond de Andrade

“Lava na água fria, em vão. Está quase, quase – euu chego perto. Pronto, outra vez. Lá vem ele, certeiro: o facão redondo de mel”
Dalton Trevisan

DA ARTE








I

Se voltas o rosto
É como a barra diurna
Destelhando o teto da madrugada

Se não acontece
O vento frio noturno
Petrifica as mãos
Que te escreve versos
E a Vida
Torna-se muda
Sem idioma
Só silêncio
Apocalipse amortalhando o mundo

Ah, mas quando
Voltas o sorriso
Um calor abrasante
Faz crescer lírios e girassóis
Do esterco úmido
Faz fenecer o lodo
E a areia escaldante vira floresta
Enverdece tudo

E se me tocas
Há um mágico
Que faz andarem os aleijados
E ouvirem os surdos

E se me amas
Uiva em mim o lobo

Uibaí, 23 de junho de 2009

II

Porém
Nunca voltas o rosto
Abres um sorriso
Toca-me as mãos
Amas meu corpo

Se vês inteira pertencida em alma
Mas pode a alma permanecer
Se perecer a carne?
Não creio!

É preciso transformar a sede
Em festa
E a fome em brasa
Aquecendo a noite
Fazendo dia
Dentro de casa
Sobre a cama

Pois a alma alada
Só deseja
E nunca ama

E a carne reclama

Uibaí, 23 de junho de 2009

III

Vives como se fosse objetivo a preservação
E consequentemente a comiseração e a responsabilidade
Doses regulares de moral, pílulas de auto-piedade
E a lastimável obediência à suposta Razão

Perguntas se assim vivo e eu digo “Não”
Nunca Mais assim hei de seguir a Vida
Antes a incerteza da Artista, a bebida
Perturbando o labirinto e afetando o juízo são

A “viver” farto de rotina e fadigas
E esmorecer de tédio morrendo de fastio
Prefiro viver abrupto e arredio

A sistemas, crenças, essas ordens de Fé
Que juram escorar-se na Razão
Mas racionais não foram, não são e nunca serão

Irecê, 25 de junho de 2009.

IV

A imagem que me toma a mente
É de uma bela mulher pudica e despida
Não de carne, mas em rocha esculpida num altar
Duma Igreja blasfema onde se adora a Vida

Mas não se adora lá o feminino em particular
Lá se adora o efêmero, o passageiro
Pois a maior beleza nunca é fixa
O Eterno é incontornável, translúcido e feio

E o Belo sempre se transmuta e muda
O Belo perece e o Eterno permanece
Mas enquanto o Eterno é carrancudo e obriga
Que lhe lembrem, do Belo não se esquece

O Belo toma a imagem da mente
E confere lentamente a sensação de prazer
Já o Eterno habita, não a memória, mas a consciência
E pra que Ele haja, nos ameaça com o não-ser

Irecê, 25 de junho de 2009.



V

A sua sensibilidade de Artista
Acha rude meu jeito
E o verbo “pegar”
Vulgar
Mas não
Vinicius de Moraes, fosse vivo
Me daria razão
“Pegar” é sublime
Coisa de anjos

Se eu lhe pegasse, por exemplo,
Entraria num gozo calmo e sairia desse banzo
Ah, e aquelas vezes
Em que se vê
Coisa tão bela
De não se crer que há
E a gente pergunta
“É de se pegar?”

Ah, moça
Quero pegar você
Mesmo que não concordes
Que haja aí poesia

Uibaí, 28 de junho de 2009.

VI

Eu gosto de você de um jeito
Que até o preço do pão me importa pouco
Que poderia falar até ficar rouco
Dessa coisa que trago guardada no peito

Deitado no hospital, vegeto nesse leito,
Me distraio com livros de história da arte
E você está em tudo, em toda parte
E já não é mais só desejo, nem afeto

O desejo, dos sentimentos, é um feto
Que cresce e pode transformar-se muito
E ele cresceu e transformou-se tanto
Que no que ele tornou-se, não estou afeito

Eu gosto de você de não ter jeito

Inverno de 2009

terça-feira, 23 de junho de 2009

ai, viver enche-me de tédio
viver é um rolar tão sem sentido
que a simples sensação de estar vivo
só aparece quando falta remédio

mas que mistério é esse de morrer?
então quase morrer é sentir-se vivo?
pra quê ouvir da Morte o agudo silvo
como pré-requisito pra saber viver?

não, viver enche-me de cansaço
o sensacional é tedioso
e nunca o insuportável é radioso
a dor não é prazer e este é asco

mas lembrai-vos, já disse o poeta
"preferiram os delicados morrerem"
mas não viam sentido em padecerem
e de dor em dor, a morte é certa

mas vivo, o que mais me intriga
é que mesmo sem razão nesa batalha
não busco no morrer o que me valha
e sem saber porquê, amar a vida

Uibaí, 15 de abril de 2009
Eu não sei se quero isso mesmo
não sei se é isso mesmo e espero
e me vem de mim mesmo um pejo
por te amar tanto quando não te quero

Então te quero como se te amasse
mas não te amo, em bom dizer te quero
e nesse confusão me desespero
a própria dúvida me enrubece a face

E tranlado o amor à carne
e o desejo me invade o peito
e a carne fez com que se separe
o amor do querer e não tem jeito

A vida é assim, janelas abrindo
portas cerrando, pois viver é um esteio
e essa teia disforme que se vai urdindo
aprisiona e cismo meu ser por inteiro

Uibaí, 15 de abril de 2009

*

Não, não me aviem uma vida
rotina, amor, decência, moral
não reprimam em mim o animal
pois esse em mim nã se civiliza

não, não me botem a camisa
por dentro da minha calça
não vou apregoar essa farsa
ela de mim não precisa

ela já tem até deus
e seus papas, santos, anjos
já tem o poder e só banzo
ela causa aos olhos meus

deixem que eu prossiga
assim não serei tão fútil
seguir os outros me é inútil
por mais certo que seja e me diga

não, não quero, vou não
que essa comédia cai-me mal
decência, amor, rotina, moral
é esforço feito em vão

Flávio Dantas Martins
Uibaí, 16 de abril de 2009

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Teve gente que se divertiu nessa festa
(Todas do São João Uibaí 2007)









Nas calçadas, habita o lodo
que, sim, é sujo
causa asco, fastio
espanta o apetite

entretanto
é nas calçadas que o mundo caminha
enquanto ele é sonhado dentro dos quartos cobertos de gesso
enquanto ele não passa de especulação ao som de canções
ou em frente de sofás

nas calçadas, o mundo é de uma crueldade e injustiça
de um sadismo
de um perigo
de uma ferocidade

ele é todo tempestade
ao mesmo tempo: enredo sem trilha

é nas calçadas que o mundo acontece de todo
e não em falsos pedaços servidos frios

Uibaí, 2 de abril de 2009
Triste, bebo até o fim
do gole de aguardente
sinto-me sujo e doente
e me apiedo de mim

sinto os olhos censores
das velhas aposentadas
que de igrejas frequentadas
criam por Deus amores

mas sinto-as cheias de dores
de sua vida pecadora
que retumbava outrora
mas feneceram como flores

e elas tem até Deus
e eu, que não creio e sinto
um vazio por dentro e desminto
bebendo feliz com os meus

é fácil em condenar
mas elas se esqueceram
que remédios por inteiro
há vários a se usar

e a maior droga não é
nem de longe o meu alcool
ele é droga, de fato
mas nem se compara a fé

e da fé, eu sou o filho
mais infame e rejeitado
dela fui deserdado
mas, vivo, sigo meus trilhos

do amor, fui combalido
de Deus, desacreditado
e quem vê o meu estado
pensa olhar para um vencido

mas enganam-se e penso
que mesmo em corpo caído
meu espírito soerguido
preserva a alma de bardo

um bardo que não tem versos
que não preserva esperança
e feneceu a criança
que trazia em si, imerso

não, não bebo por prazer
bebo pra acalmar a alma
cessar essa dor que malha
bebo para a esquecer

mas é um esforç0 inútil
pois, devorante, a vida
volta toda empedernida
e reabre o tédio mútuo

que eu sinto pela vida
e que a vida me sente
e quem me pensa doente
advinha-me a ferida

mas não, não é física
a chaga que eu carrego
está aberto no meu ego
nem é cancer, nem tísica

o meu mal não é beber
e não poder mais livrar-me
o problema é um charme
que a vida não me apresenta

e se não encho de vinho
o vazio que me preenche
esse fantasma indecente
me pertuba, sozinho

é por isso que bebo, pois
viver é adoecer de tédio
e beber é um remédio
com o codo, estou a dois

pois ele não me exige fé
nem crenças de ordem alguma
e bebum não tenho alcunha
e a dor do mundo não me é

a dor que me tortura
é ver ungida toda a cara
de sangue, dor canalha
e nunca saber da ternura

Uibaí, 11 de abril de 2009

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Poemas


1
Ah, a idéia tua
há tu, ser ideal
a tua pele sua
repele o frio
e faz do meu inverno
um carnaval
2
Navegar
a esmo sem lar
e mesmo sem mar
quero navegar
vesgo a procurar
as ondas que se escondem
sob tuas roupas
estas são tão poucas
como queria me perder no pecado contigo
mas que crime há
em ser um pouco mais que amigo?
3
meu peito arfante
da asma de ti
me afoga às noites
em que me faltas
ofegante, morro
mas vem vivas e me afaga
minhas águas em tuas águas
minhas mãos e tuas palavras
eu poesia e tu pousava
tu lua e eu astronauta
4
Não quero que a poesia me abra portas
Antes abra pernas
E monte um círculo vicioso
De versos gozosos

Não quero que a poesia me leve em sonhos
Nem quero lua cheia e eu uivando
Quero antes
A volúpia de sermos amantes
O matar-a-sede devorando carne
E a vileza de bater nela
Mas bater com todo o amor que pode haver neste mundo

Não quero que os sonetos falem casas,
Jantares, envelhecimento, fidelidade
Quero, primeiro
O cessar das vontades
E o esvair na escuridão sobre nossa cama
Que não nos pertence
Mas pertence a quem ama

Não, não quero que me fales
Palavras gentis, de amores verdes que amadurecem lentamente
E de forma calma
Preciso, pra sobreviver, que me fales canalhices
Sacanagens, putarias
E todo aquele vocabulário de calçadas

Pois assim é meu romantismo
Feito de encontros soturnos
Em luas enluaradas
E lobisomens sedentos
E mulheres de branco nuas
Em altas da madrugada
Regada a álcool e versos

5
Venha, menina-mulher
Vamos compartilhar esse matar-a-sede
Que nos cega
E nos afaga
Venha, rápido, com a sordidez de uma fera
Alada
Sejamos
Um amalgama
De carne e pulsão e nada

Venha
Que esse matar-a-sede me afoga
Se o possuo
E me possui quando me falta
Agora, que o ensandecer é uma pantera louca
Que nos circunda e tocaia
Certeza, presa dessa coisa-fúria
Que seja logo feira e poesia futura
Uibaí, 28 de março de 2009.
6
Fuga.
Encanta-me a ideia,
Mas falta-me coragem.
Então adormeço e penso
Em toda a safadeza
Que pode haver
Em teus pensamentos
E atos
(que dão no mesmo).
Mas acordo
E, cansado, não do amor safado
Mas do meu próprio cansaço
E me esqueço
(mas até me sinto alegre)
Que o bom da vida é a ser logo
E o bom da morte é ser breve

Uibaí, 31 de março de 2009

quarta-feira, 8 de abril de 2009



ah, vida

me resta

um ai

um soslaio

um áspero oi

de sombra


e uma esperança

que é tanta


Flavio Dantas

Uibaí, 06-04-2009
nesse dia que estou perto
de completar mais anos
não sinto alegria
ou tristeza.
se danos
trago
do caminho
saudades carrego
na sacola.
saudades
de um carinho que me deram

triste mesmo
é a solidão-inferno


Flávio Dantas

Uibaí, 06-04-2009

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Soneto

Parece mesmo que o amor maltrata
Pois quando te devasso, te bebo, te como
Nas noites, tu gemes, tens sede e fome
E então gritas e implora que te bata

E faço, forte, pois sou seu homem
E esganiçada, tu gritas e tu ladras
Eu chamo a ti de tarada e de safada
E os mais torpes inomináveis nomes

E não sei se como gatinha ou como loba
Tu gozas várias vezes e mais implora
E outra vez te possuo o corpo, toda

Pois só eu quem te decifra e te devora
Minhas mãos conhecem os fechos de tuas roupas
E a ti pertence minha alma e minha tara
Uibaí, 1 de março de 2009

sábado, 28 de março de 2009

Do romantismo das calçadas - parte 7

fanar a flor
é ofício nobre.
tal qual
alimentar a cabra
lavrar a terra
fundir o cobre.
pois
abre às novidades
novas almas.

fanar a flor
é boa obra
como limpar calhas
para que a fina
água possa
permanecer insípida.

glória às abelhas!
viva os beija-flores!
pois, ao fim
prevalecem
os prazeres
sobre as dores

Uibaí, 26-março-2009

Do romantismo das calçadas - parte 5


Não quero que a poesia me abra portas
Antes abra pernas
E monte um círculo vicioso
De versos gozosos

Não quero que a poesia me leve em sonhos
Nem quero lua cheia e eu uivando
Quero antes
A volúpia de sermos amantes
O matar-a-sede devorando carne
E a vileza de bater nela
Mas bater com todo o amor que pode haver neste mundo

Não quero que os sonetos falem casas,
Jantares, envelhecimento, fidelidade
Quero, primeiro
O cessar das vontades
E o esvair na escuridão sobre nossa cama
Que não nos pertence
Mas pertence a quem ama

Não, não quero que me fales
Palavras gentis, de amores verdes que amadurecem lentamente
E de forma calma
Preciso, pra sobreviver, que me fales canalhices
Sacanagens, putarias
E todo aquele vocabulário de calçadas

Pois assim é meu romantismo
Feito de encontros soturnos
Em luas enluaradas
E lobisomens sedentos
E mulheres de branco nuas
Em altas da madrugada
Regada a álcool e versos

Do romantismo das calçadas - parte 5

Venha, menina-mulher
Vamos compartilhar esse matar-a-sede
Que nos cega
E nos afaga
Venha, rápido, com a sordidez de uma fera
Alada
Sejamos
Um amalgama
De carne e pulsão e nada

Venha
Que esse matar-a-sede me afoga
Se o possuo
E me possui quando me falta
Agora, que o ensandecer é uma pantera louca
Que nos circunda e tocaia
Certeza, presa dessa coisa-fúria
Que seja logo feira e poesia futura


Uibaí, 28 de março de 2009

domingo, 15 de março de 2009


AMASSE-ME

I

Talvez tenha feito menos falta
Quem sabe sobrou espaço
Na nosso quitinete tão miúda, agora árida
Ávida de vida, talvez esteja mesmo
Deixando o café esfriar
E a comida esperando no prato
Quando tu ainda pões a mesa pra dois
E eu aqui
Noutro país
É possível que eu seja
Possessivo, impulsivo, pobre
De espírito
É bem apetecível
Me culpar de tudo
- sem razão, mas com bons argumentos –
mas deixa
que talvez
cedo – certo que tarde –
me esqueça
ou melhor ainda
me odeia – o ódio dá força –
só assim eu vou poder fazer o mesmo

II

Se me amasse
Assim como me cobra
Eu não teria partido
E me teria de sobra
Sou ilha e sou soçobra
Pau pra toda obra

Se me amasse
Como te amei
Sem melodramatização
De novelas das sete, oito, nove
Sem sonetos decimétricos
Se desejasse meu corpo-alma
Lambendo cada polegada
De pele
Batizando cada pelo
Cabelo
Ainda me teria
Batendo na canela e te afogando
Me teria de metro
Te enrolando toda
Me teria que nem mato depois de chuva

III

Por isso, fui embora
Não me passaram o script
E eu, ator principal
Fiz nada do previsto
E não te amei
Como no romantismo
- antes
te comi
como canibal
feito bicho
sem nenhuma altruísmo –
Não te amei
Como príncipe em cavalo branco
Em história pra bebê dormir
Antes
Te fiz gemer, gritar
Te montei, te bebi, te comi

IV

Antes que me condenes
Por amar-te
Não como santo
Mas como toda gente
Antes
Lembra
Dos múltiplos
Tantos
Das reformas da cama na carpintaria
E na falta da cama
Lembra-te
Do colchão
Do chão
Da pia
Da mesa da cozinha
Do sofá
Lembra do vinho bebido em taça quente
Lembra do chá
Que me fazias em meus resfriados constantes
Antes

V

E eu
Que pensei ter feito
Tudo direitinho
Fazendo tudo errado
E eu
Que fui ser eu mesmo
Sendo vagabundo
E não menino mimado
Bem educado
E eu
Que quis mais
Ser ilegal, imoral
A apaixonado
Que quis ter você
Não do meu lado
Mas sob mim
Sobre mim
De quatro, de pé
Meio de lado
Te perdi

E isso dói

Uibaí, 28 de fevereiro de 2009

VI
Vem ao meu encontro
Que busco o teu corpo
E tua alma

E torpe, me assanho
E meu cenho se abre
Não como rosa do botão

Mas como da bainha o sabre
Vem com teu encanto
E me abre as portas

Que entram por teu corpo
E saem no paraíso
Num mundo circular, perfeito, sem cantos pra nos esconder

Uibaí, 14 de março de 2009.

VII
Se me amasse assim como te amo
Não me amaria
Como o crente ama o ídolo

Antes, me amaria
Como o pássaro bate as asas
Com volúpia de cavalos cruzando éguas

Não, não me quero amor
Como anjos tocando harpas
Em nuvens alvas

Quero antes fogo
E vinho, e gelo, e suor
Suando, zuando e acordando a vizinhança
Não me queira como a pintura etérea
A se apreciar, de forma eterna

Quero antes, que o amor
Que me nutre
Termine em ladradura, tragicamente
A ser amor estanque

Não, não me peça
Pra ser peça em tua máquina
Quero ser combustível e queimar


Uibaí, 13 de março de 2009

terça-feira, 10 de março de 2009

dos domingos


I
O dia acorda preguiçoso. Este sol detrás de nuvens brancas, esse vento que quase acaricia a manhã, esse espreguiçamento lento, essa serra mais verde que os demais dias, esse almoço com gosto de descanso, esse café primoroso que arregala as pupilas do ser para as cores do dia, e dilata os horizontes da mente, e relaxa os pés cansados de mais uma semana de sub-vida, e esquenta um leve frio remanescente das horas noturnas.
II
Tudo é nada. O sol isturricante no meio do céu inexiste. Os sentimentos se misturam, se contemplam e ficam difusos no nevoeiro das horas mortas. A futilidade absurda se faz normal e costumeira. O jejum civil e religioso ilustra um dia azul de poeira. A tarde rola como bicicleta de aposentado em passeio matutino. Ah, tanto tempo nesse dia infinito e nada! As pessoas, na tv, vêem nada o nada. Nos clubes, nas calçadas, nos bares, nas igrejas. Tudo é tão mecânico e febril, o desejo é tão mesquinho e incompetente que tudo não passa de nada.
III
A noite desaba sobre a cidade, tão vazio quanto o dia. Os carros fazem romaria em direção à pracinha. Uns retorcem-se de tédio e tristeza em suas camas velhas. Outros velam o fim do dia e como urubus atacam com furor a carniça da noite. Animais noturnos que se alimentam de fluidos, sejam eles humanos ou sintéticos. Vampiros do riso e do gozo. Os bares diminuem. As garrafas secam. Os jardins e becos gemem. A solidão rouba o ar de peitos perdidos que se buscam, e chocam-se, e perdem-se. Os instintos levam depressivos à rua em busca do acaso. Os lobisomens embriagam-se, e caem nas calçadas, e vomitam mentiras, e comem promessas. Um caminhante noturno avista novas portas. Há beijos sinceros, abraços orgásticos e desertos pessoais. Tanto a solidão como o sexo, tanto o riso como o choro, tanto a dúvida quanto o certo comem o dia, e crescem nutrindo-se do sol e só resta a escuridão. Cigarros apagam e os isqueiros cantam músicas boemias.
03-07-03

quinta-feira, 5 de março de 2009

soneto

Cadê você, pequena?
Como funcionas?
Gemes quando dormes?
Sonhas quando amas?

Tremes quando gozas?
Uivas quando estudas?
Gozas quando rezas?
Gritas quando muda?

Ah, tu faz as coisas
Mas abruptas
E absurdas

Ah, me vês quando cegas
Me sentes quando longe
Me ouves quando surda

quarta-feira, 4 de março de 2009


Seio que dói
Não sei
O que dói



*



Soneto

Da última vez que pus os olhos em si
Devanesci, pensei haver perdido a vida
E o esvair do sangue da profunda ferida
Me dava êxtase, enfado, gozo e frenesi

Seu olhar de soslaio desejando vir
Mostrando dúvida e eu, nervoso e incrédulo
Escolhendo palavras, tateando igual um cego
Buscava algum meio de a si me referir

Mas esconder que quero a si como a lua
Quer a noite, talvez como a centelha quer a palha,
O asceta a virtude, o cativo quer a rua

Mas, inda assim, me escondendo, esforço em vão
Quero a si, teimoso igual a folha que farfalha
No outono, querendo queimar igual carvão

Uibaí, 25/02/2009

terça-feira, 3 de março de 2009

algumas quadras


Noite amarga
Feito paratudo
A pinga afaga
E o peito fica mudo


*


tudo que passa
não é nada
e o que não fica
isso é tudo


*


no banzo da minha
rotina domingueira
vi ela num sábado a noite
e minha vida virou uma feira

sábado, 28 de fevereiro de 2009

pode remendar os buracos dos tiros
pode estancar o sangue vivo e vermelho
pode apagar meu nome, meu endereço
e lançar bombas de nêutrons na minha rua
pode colar adesivos na minha boca
incinerar a voz de todos os meus poemas
lançar meu único presente pela janela
disseminar a amnésia pela cidade
e tomar todas, consumir todas as drogas
querendo, em vão, ver o passado
desintegrado em meio a fumaça
mas o passado é presente
como propaganda sobre o natal na tv
como estrela em noite desnublada
como o inevitável diante do destino estático
como a sina suicida assassinada
pode rasgar o meu desenho no teu corpo
- pele, hemoglobina e pedaços misturando-se –
e decorar todos os termos científicos
mas vai restar inda meu rosto no seu rosto
e nosso fogo, e nossa brasa, e nossa cinza

Uibaí, 11-05-04

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

palavras palpáveis




I
Ver o mar, e o vi, é bom. É só como ver o mar, nada igual. Mas se não há vista, que importa? Não só o vi, mas mergulhei e agitei meu corpo no seu leito, na sua correnteza monótona, de vai e volta. Senti o mar. É como sentir a água, mas só é igual como sentir a água do mar. Sentir a água do mar é bom. Mas se não dá pra sentir ela no corpo? E daí? Sentir o gosto, degustar o sal não é igual a mais nada. Talvez seja até desagradável ou normal, visto que é habito o que não for turismo. Mas eu, como planta do sertão não vi nada igual. Se não houvesse língua nem sal. E se não houvesse, ou melhor, se não houvesse som, aquela melodia que segue “água mole, pedra dura...”. se não houvesse som, nem sal, nem sol, nem visão, então não haveria mar. Se não houvesse mar, não haveria coisa boa em ver o mar. Se não houvesse prazer, então podia haver dor?
II
Compreensão. Nunca a tive, nem em mim, nem dos outros. Talvez por que não possui palavras palpáveis para que a merecesse. Ou pela leitura que fiz das coisas. Mal compreendo meu mundo. Ela não me entendeu. Compreendo. Ela me pede um teorema que diga o que quero dizer. Não o possuo. Talvez porque não compreendo o que digo. Ela me compreende. Me pede um poema. Eu não compreendo. Há coisas que só a poesia pode dizer. Lembro de uns versos. Mas não os digo. Ela pode não me compreender. Será que é por que não quero compreensão? Ou a desejo na medida exata? Eis uma faceta minha que não compreendo. Nem poderia. Talvez por que não posso. Quem sabe por que não desejo nem mesmo um tanto de mentira. Não é incompreensível, não. Apenas compreenda que isso não pode ser compreendido. Ela me pediu uma definição. E não a possuo. Talvez nem a poesia possa. Compreender as flores do cerrado é como compreender as almas da caatinga. Não há palavras palpáveis. Se as há, não as tenho. Se não há, não sei. Compreende? A poesia é sentimento. Sem números nem métodos. E só a poesia pode explicar como te sinto. Como queres compreender o que sinto, se te sentes antes de mim. Só a poesia. Então te sintas como se eu te sentisse. É, eu também não entendo. Só a poesia. Como te sinto? Questão onde não basta entendimento. Repito tudo de novo, pois creio que se escrevo é por que quero ser compreendido. Não podes te sentir como eu te sinto, por que já te sentes antes de mim.
III
A verdade é um bicho invisível socado na garrancheira. É a livusia que não aparece, e que só existe pelo medo que causa.
IV
Sinto, só, como se eu fosse o mundo e tudo fosse nada. As palavras estão lá. Timidamente elas espiam. Aos poucos, se expõem. Depois já perdem a vergonha. Aceitam tudo que lhe for de agrado. Palavras tocáveis. Palavras palpáveis como flores. Palavras que coçam, dúvida. Palavras daninhas, cultiváveis. Palavras prováveis. Botam os pés na mesa, mudam o canal na tv, fuçam as panelas. Descartáveis. Descaradas, caras lavadas como seus amantes, na timidez dos poetas. As palavras insurgem. E não há mais como, nem para onde fugir, mas há porquês.


25-12-03