sábado, 28 de fevereiro de 2009

pode remendar os buracos dos tiros
pode estancar o sangue vivo e vermelho
pode apagar meu nome, meu endereço
e lançar bombas de nêutrons na minha rua
pode colar adesivos na minha boca
incinerar a voz de todos os meus poemas
lançar meu único presente pela janela
disseminar a amnésia pela cidade
e tomar todas, consumir todas as drogas
querendo, em vão, ver o passado
desintegrado em meio a fumaça
mas o passado é presente
como propaganda sobre o natal na tv
como estrela em noite desnublada
como o inevitável diante do destino estático
como a sina suicida assassinada
pode rasgar o meu desenho no teu corpo
- pele, hemoglobina e pedaços misturando-se –
e decorar todos os termos científicos
mas vai restar inda meu rosto no seu rosto
e nosso fogo, e nossa brasa, e nossa cinza

Uibaí, 11-05-04

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

palavras palpáveis




I
Ver o mar, e o vi, é bom. É só como ver o mar, nada igual. Mas se não há vista, que importa? Não só o vi, mas mergulhei e agitei meu corpo no seu leito, na sua correnteza monótona, de vai e volta. Senti o mar. É como sentir a água, mas só é igual como sentir a água do mar. Sentir a água do mar é bom. Mas se não dá pra sentir ela no corpo? E daí? Sentir o gosto, degustar o sal não é igual a mais nada. Talvez seja até desagradável ou normal, visto que é habito o que não for turismo. Mas eu, como planta do sertão não vi nada igual. Se não houvesse língua nem sal. E se não houvesse, ou melhor, se não houvesse som, aquela melodia que segue “água mole, pedra dura...”. se não houvesse som, nem sal, nem sol, nem visão, então não haveria mar. Se não houvesse mar, não haveria coisa boa em ver o mar. Se não houvesse prazer, então podia haver dor?
II
Compreensão. Nunca a tive, nem em mim, nem dos outros. Talvez por que não possui palavras palpáveis para que a merecesse. Ou pela leitura que fiz das coisas. Mal compreendo meu mundo. Ela não me entendeu. Compreendo. Ela me pede um teorema que diga o que quero dizer. Não o possuo. Talvez porque não compreendo o que digo. Ela me compreende. Me pede um poema. Eu não compreendo. Há coisas que só a poesia pode dizer. Lembro de uns versos. Mas não os digo. Ela pode não me compreender. Será que é por que não quero compreensão? Ou a desejo na medida exata? Eis uma faceta minha que não compreendo. Nem poderia. Talvez por que não posso. Quem sabe por que não desejo nem mesmo um tanto de mentira. Não é incompreensível, não. Apenas compreenda que isso não pode ser compreendido. Ela me pediu uma definição. E não a possuo. Talvez nem a poesia possa. Compreender as flores do cerrado é como compreender as almas da caatinga. Não há palavras palpáveis. Se as há, não as tenho. Se não há, não sei. Compreende? A poesia é sentimento. Sem números nem métodos. E só a poesia pode explicar como te sinto. Como queres compreender o que sinto, se te sentes antes de mim. Só a poesia. Então te sintas como se eu te sentisse. É, eu também não entendo. Só a poesia. Como te sinto? Questão onde não basta entendimento. Repito tudo de novo, pois creio que se escrevo é por que quero ser compreendido. Não podes te sentir como eu te sinto, por que já te sentes antes de mim.
III
A verdade é um bicho invisível socado na garrancheira. É a livusia que não aparece, e que só existe pelo medo que causa.
IV
Sinto, só, como se eu fosse o mundo e tudo fosse nada. As palavras estão lá. Timidamente elas espiam. Aos poucos, se expõem. Depois já perdem a vergonha. Aceitam tudo que lhe for de agrado. Palavras tocáveis. Palavras palpáveis como flores. Palavras que coçam, dúvida. Palavras daninhas, cultiváveis. Palavras prováveis. Botam os pés na mesa, mudam o canal na tv, fuçam as panelas. Descartáveis. Descaradas, caras lavadas como seus amantes, na timidez dos poetas. As palavras insurgem. E não há mais como, nem para onde fugir, mas há porquês.


25-12-03