terça-feira, 1 de junho de 2010

Vicente Veloso. Do Auto da Canabrava

Eu sou Vicente Veloso

E vivo dentro dos mato

Fui escravo, fugitivo

Hoje, sou livre de fato

Vim de cima da montanha

Do arraial do Ventura

Pra lá de Morro do Chapéu

Trabalhava lá nas mina

Pertin de Jacobina

Onde as pedras trisca o céu

No ano quarenta e quatro

Do século mil e oitocentos

Eu vivia como escravo

Trabalhando como jumento

Vivendo desesperado

De tanto, tanto trabalho

Fazendo serviço pesado

Fosse noite ou sol a pino

Nunca acostumei com o fardo

Que tinha no couro grudado

Desde o tempo de menino

Um dia me perguntei

Se aquele era meu destino

Trabalhar até ficar velho

Trabalhar desde menino

E não vê o resultado

De tanto, tanto trabalho

Trabalhar até não prestar

Até ser posto de lado

Pois o dono do escravo

Mandado do céu não é

Depois de esgotar o sujeito

Quinze, vinte ano no eito

Lhe joga no meio da rua

Pra viver de esmolé

Pois o escravo quando velho

Já não guenta mais serviço

E fica veio, jogado

Como fosse um estrupiço

Um trem velho mulambento

Melhor não ter essa sina

Ter morrido pequenino

Um dia me perguntei

Se era aquele meu destino

Então, desorientei

E fiquei desplaneado

Daquela minha questão

Arrumei o resultado

Mas fiquei matutando

Sem saber se o fazia

Sem saber se me matavam

Ali mesmo na freguesia

Mas um escravo morto

Era de pouca valia

Não foi de caso pensado

Não foi uma maldade

Foi vontade de justiça

Dessas que anima e atiça

Que me chamou de verdade

E me disse, assim, baixinho

“Vicente, sabe a verdade

Está aí, em tu, aí dentro

Dentro do seu coração

Tanto a sua liberdade

Quanto a sua escravidão”

Então, animado e afoito

Fiquei com meu sangue quente

Recebi umas broncas

Do que se dizia meu dono

Que aquela minha moleza

Sofria por dor de dente

Era mode uma aguardente

Que sumiu de sua cabana

Eu disse, não, não fui eu

E não irei trabalhar

Ta vendo cá pra esse dente

Assim não vou agüentar

O diabo que tale dono

Pensou que o velho Vicente fosse

Não julgou novo o Vicente

E tentou dar-me com o açoite

Ali, mesmo, decidi

Não seria mais escravo

Não precisava de lei

Pra me haver libertado

Eu mesmo, preto Vicente

Orgulho da cor negra, carvão

Me libertei das correntes

Que me prendia não o braço

Mas o coração e a mente

E a espada da justiça

Em forma de velho facão

Usou das minhas duas mãos

Consegui minha liberdade

E dei, adeus, sem saudade

Para aquela escravidão

Aí, vixe, cai no mato

Subi serra, desci serra

Passei lajedo, beirada

Que beiradeiro não beira

Passei caatinga fechada

Sem lavoura nem fazenda

A não ser os gado e as roça

Que deus do céu, mesmo inventa

Caí no mato sem rumo

Caí no mato sem dó

Pois sabia que deus é grande

E o mato é muito maior

Me afastei o mais possível

Das terra de Jacobina

E de Morro do Chapéu

A apesar de ter passado

Fome e sede lá nos mato

Não ser mais um escravo

Me fazia sentir no céu

Valei-me São Benedito

Nossa Senhora do Rosário

Valei-me Jesus Cristo dos preto

Que padeceu no calvário

Cheguei lá num boqueirão

Duma serra que de longe

Era meio que azulada

Aqui ou então acolá

Um lajedo a branqueava

E embora, fome passasse

E o cansaço apertasse

A noite fria enginhava

O couro nu desde a tarde

A dor cresce o pé de pau

Os arvoredo e os animais

E nos homens foi a dor

Que trouxe a liberdade


Flávio Dantas Martins

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